
1 – O quadro atual: auxílio-reclusão e “auxílio às vítimas”
Há muitos anos que circula na internet falsas informações e péssimas valorações acerca do benefício previdenciário chamado auxílio-reclusão. Um dos “equívocos” fartamente reproduzidos pela ignorância de parte da rede é que o benefício teria sido criado no Governo Lula. Outra, que seria paga ao detento. A terceira, que seria um benefício pago na exata proporção do número de filhos do detento. Para além das informações erradas, a existência do benefício é tratada como um absurdo, um gasto de dinheiro “do contribuinte” a alimentar o crime, sem se preocupar com o amparo às vítimas, estas sim a merecer preocupação da sociedade. O resto, dá pra imaginar.
Na realidade, o auxílio-reclusão é um benefício previdenciário. Criado em 1960, ele é concedido à família daquele detento que, ao ser preso, detinha a condição de segurado da Previdência Social, ou seja, quem vinha contribuindo com o sistema previdenciário. Logo, é um dos instrumentos de seguro social previstos, capaz de garantir o sustento dos familiares de um preso que, até ser colocado em tal condição, trabalhava – e formalizado – ou contribuía para a Previdência como autônomo. Não é preciso muito raciocínio para se imaginar que o benefício é concedido à menor parcela das famílias de presos. E é isso mesmo: parte ínfima das famílias de presos no Brasil recebem o tão mal afamado benefício.
Por outro lado, não é preciso pensar muito para se perceber a falácia do discurso que afirma que o Estado atende a família do criminoso, via auxílio-reclusão, mas não atende a família da vítima do mesmo crime. Besteira. Se um sujeito ficar impossibilitado para o trabalho em razão de um tiro, por exemplo, ele obterá benefício previdenciário, caso esteja, na data do fato, contribuindo com o INSS. Da mesma forma, a família de um sujeito vítima de homicídio que estiver regular com a Previdência, receberá pensão por morte.
2 – Porque a PEC é absurda
Diante disso, estamos diante de duas questões a serem analisadas na PEC da deputada Antônia Lúcia: a proposta de extinção do auxílio-reclusão e a criação do tal auxílio às vítimas.
2.1 – Fim do auxílio-reclusão: uma arma a mais para o crime organizado
Embora tenhamos abordado as diversas falácias que circulam a respeito do benefício do auxílio-reclusão, ele de fato existe há mais de 50 anos e é deferido a inúmeras famílias pelo país afora. A pergunta é: sua extinção traria algum avanço? não.
O primeiro ponto: um princípio caro do Direito Penal é o de que os efeitos de uma condenação não devem se estender para além da pessoa do criminoso. A existência de um benefício previdenciário dialoga diretamente com essa ideia, ao garantir que a família de um sujeito que, antes de ser condenado, contribuía com a Previdência, esteja salvaguardada da ausência de seu provedor. Não há nisso, portanto, qualquer “incentivo ao crime”, como alguns teimam em repetir. Trata-se apenas de permitir que os familiares de um sujeito detido possam organizar sua vida na ausência deste.
Um dos problemas mais graves da temática prisional atual, com consequências diretas na segurança de todos nós que estamos fora do sistema penal é a robustez que foram adquirindo as organizações criminosas no interior dos presídios. Tal poder advém de vários fatores: um deles é a segurança do detento no interior do presídio; a segunda é a assistência que estas organizações terminam dando aos familiares deste, aqui fora. Em geral, o sujeito sairá do presídio vinculado à organização, com dívida a pagar com aqueles que garantiram sua integridade física e proveram sua família. Em muitos casos, terão envolvido mais familiares nesse círculo vicioso. E assim vai.
Nesse aspecto, a extinção do auxílio-reclusão não tem apenas uma carga antihumanista profunda, mas é um grave equívoco do ponto de vista mais pragmático possível, porque jogará dentro desse círculo vicioso das organizações criminosas um conjunto de famílias que hoje, graças ao benefício, conseguem minimamente se manter alheias a esse processo. Logo, o projeto da deputada Antônia Lúcia é aquilo que os antigos chamam de “ideia de girico”, desde uma análise como política criminal. Mesmo que involuntariamente, a deputada está, com seu projeto, servindo aos interesses do PCC e outras organizações.
Por último, não há nenhum elemento que autorize alguém a pensar seriamente que a existência do auxílio-reclusão sirva como “incentivo ao crime”. Só uma mente muito deturpada pode acreditar que um sujeito iria cometer um crime pensando que a família receberá o benefício enquanto ele estiver preso. Pensar algo assim é típico de alguém muito fora da realidade.
2.2 – “Auxílio às vitimas”: uma proposta de quem não entende nada de previdência
Por último, cabe referir também a tamanha besteira que é a proposta de criar um “auxílio à vitima”, proposta que, para além de demagógica, é inócua, como se verá.
Como dito antes, qualquer pessoa que for vítima de um crime e estiver dentro do sistema previdenciário poderá contar com auxílio-doença, aposentadoria por invalidez ou, em caso de morte, seus dependentes contarão com pensão por morte. Se a parlamentar ignora a existência de tais modalidades de “assistência à vítima”, temos uma situação grave, porque temos uma deputada que não entende nada de previdência e se arvora a legislar sobre. Se conhece tais modalidades e ainda assim pretende criar algo que tem exatamente o mesmo efeito, estamos diante de pura e simples demagogia, sem tirar nem pôr.
Se a deputada imagina que o tal “auxílio às vitimas” deve ser pago a qualquer cidadão “vítima”, independente da condição de segurado do INSS, estamos diante de um evidente absurdo. Falta à parlamentar um mínimo de compreensão de como funciona o sistema previdenciário e sua sustentação: só se beneficia dele quem com ele contribui. Do contrário, ele está inviabilizado.
Mesmo assim, se pensarmos nas vítimas que não tem a condição de segurado, não se pode afirmar que a legislação atual não as abrigue. Estamos diante de casos que podem ser atendidos via LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), que não guarda as mesmas garantias e proteção do sistema previdenciário, mas abriga atualmente milhões de brasileiros.
Em comentários acerca do tema (ah, os comentários), vi um ousado cidadão a propor que, além do tal “auxílio à vítima”, o autor de um crime pague indenização à vítima. Ora, será que o sujeito imagina que inventou a roda? O nosso sistema legal prevê claramente a responsabilidade civil advinda de condenação criminal. Qualquer vítima (ou dependente) pode processar o autor de um crime buscando reparação do dano sofrido, seja material ou moral. Não são raros os casos. O grande limite disso é que, na esfera cível, um sujeito só pode indenizar alguém se tiver dinheiro para isso. Do contrário, estamos diante daquela sentença indenizatória totalmente inócua, por não ser exequível. No entanto, mais uma vez estamos diante de uma possibilidade que nosso sistema legal já prevê e em muitos casos garante.